Resumo
Introdução:
Experiências espirituais podem
ser confundidas com sintomas psicóticos e dissociativos, constituindo-se muitas
vezes em um desafio para o diagnóstico diferencial.
Objetivo:
Identificar critérios que permitam a elaboração de um diagnóstico diferencial
entre experiências espirituais e transtornos psicóticos e dissociativos.
Métodos:
Foi feita uma ampla revisão na literatura sobre o tema, na qual foram examinados 135 artigos identificados em pesquisa no PubMed.
Resultados:
Foram identificados nove critérios de maior concordância entre os pesquisadores que poderiam indicar uma adequada diferenciação entre experiências espirituais e transtornos psicóticos e dissociativos. São eles, em relação à experiência vivida: ausência de sofrimento psicológico, ausência de prejuízos sociais e ocupacionais, duração curta da experiência, atitude crítica (ter dúvidas sobre a realidade objetiva da vivência), compatibilidade com o grupo cultural ou religioso do paciente, ausência de comorbidades, controle sobre a experiência, crescimento pessoal ao longo do tempo e uma atitude de ajuda aos outros. A presença dessas condições sugere uma experiência espiritual não patológica, mas, por outro lado, há carência de estudos bem controlados testando esses critérios.
Conclusões:
Esses critérios propostos na literatura, embora alcançando um consenso expressivo entre diferentes pesquisadores, ainda precisam ser testados empiricamente e direções metodológicas para as futuras pesquisas sobre esse tema são sugeridas.
Introdução:
Historicamente, desde meados do século XIX, a Psiquiatria
tem desprezado e mesmo considerado patológicas as manifestações religiosas e
espirituais. Freud considerou a religião
como uma neurose obsessiva. A experiência mística também foi vista como um
episódio psicótico e como uma psicose
borderline. O Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders III (DSM-III) faz 12 referências à
religião, todas elas associadas à psicopatologia.
Outros autores, entretanto, apresentaram diferentes
opiniões. Jung viu na experiência mística
a manifestação de uma experiência psicologicamente saudável. Maslow considerou as “experiências culminantes” a
expressão máxima da saúde e do bem-estar psicológico. Hood e Caird
constataram que indivíduos que relataram ter tido experiências místicas pontuam
mais em escalas de bem-estar psicológico e menos em escalas de psicopatologia do
que os controles.
Alguns autores sugeriram a importância de se buscarem
critérios diferenciadores entre o que seriam experiências espirituais não
patológicas e o que seriam transtornos mentais de conteúdo religioso. As
contribuições desses autores para essa importante questão foram coletadas na
literatura, e procurou-se apresentar e discutir alguns critérios comuns que
tenham perpassado pela maioria dessas investigações. Ao final, concluiu-se que,
embora todos esses critérios apresentem certa coerência, ainda não foi feita até
o presente nenhuma investigação extensiva que testasse esses critérios, e são
colocadas algumas diretrizes metodológicas que alguns autores sugeriram para
essa investigação.
Métodos
A base de dados buscada foi a PubMed e os descritores
investigados foram dissociation, trance, possession e
hallucination. Foram priorizados os artigos que apresentavam pesquisas
extensivas e critérios diferenciadores entre o que poderia ser considerado uma
experiência saudável e o que poderia ser considerado uma experiência
patológica.
Resultados
Vários autores têm abordado a relação entre as experiências
espirituais e manifestações patológicas da mente. Místicos, videntes e médiuns
têm desafiado a compreensão dos profissionais de saúde mental e tornado
necessária uma adequada diferenciação entre o que seria uma experiência
espiritual saudável e o que seria um transtorno psicótico ou dissociativo com
conteúdo religioso.
Já no início do século XX, William James, investigando as experiências de êxtase
místico, verificou que essas experiências, quando saudáveis, tinham duração
breve e traziam efeitos benéficos para quem as vivenciava.
Buckley examinou
relatos autobiográficos de indivíduos que viveram experiências místicas e de
indivíduos que viveram experiências esquizofrênicas. Ele identificou aspectos
comuns e aspectos diferenciadores em ambas as experiências. Encontrou os
seguintes aspectos comuns nas duas experiências: elevação do nível de
consciência, sentir-se transportado além do próprio self, perda das
fronteiras entre o self e os objetos, dilatação do sentido do tempo,
sentir-se envolvido em luz e um forte sentido de comunhão com o divino. É
característica do êxtase místico a preservação da estrutura do pensamento e da
fala, o predomínio das alucinações visuais sobre as auditivas, um grande
aguçamento dos sentidos, estabilidade das emoções e a duração da experiência
limitada no tempo. São características de um surto psicótico a quebra da
estrutura do pensamento e da fala, o predomínio das alucinações auditivas sobre
as visuais, o embotamento dos sentidos, o esvaziamento das emoções entremeadas
por rompantes agressivos ou sexuais e a duração da experiência ser extensiva no
tempo.
Lenz enfatizou o
grau de convicção sobre a experiência vivida como critério de saúde mental: na
vivência saudável existe a dúvida sobre a realidade objetiva da experiência e no
transtorno mental existe certeza sobre essa realidade.
Lukoff e
posteriormente Greyson1 investigaram a
Experiência de Quase-morte (EQM), procurando diferenciá-las de outras
experiências psicopatológicas. Nesta experiência, um indivíduo chega a se ver
fora do corpo, encontra seres espirituais e depois retorna ao seu corpo. Assim,
Lukoff percebeu na EQM nítidos e antecedentes estressores, um bom funcionamento
psicológico prévio, uma atitude exploratória em relação à experiência e a
ausência de déficits interpessoais. Já Greyson, confirmando as características
saudáveis da EQM, tais como já tinham sido apresentadas por Lukoff, diferenciou
a EQM do transtorno do estresse pós-traumático, vendo neste último a presença de
lembranças intrusivas, a diminuição geral do interesse em diversas atividades, o
estranhamento dos outros, a restrição dos afetos e um senso de futuro abreviado
que não se faziam presentes na EQM.
Oxman também viram aspectos comuns e diferenciados
nos relatos de místicos e esquizofrênicos. Eles escolheram relatos disponíveis
publicamente, que o texto tivesse sido escrito logo depois da experiência, que
estivesse escrito em inglês e tivesse uma extensão suficiente. De comum entre
ambas as experiências, viram a abundância das fantasias e, como fatores
diferenciadores, viram que os místicos tratam de encontros com Deus e de
sentimentos religiosos, enquanto esquizofrênicos tratam de doenças e de fortes
sentimentos de maldade.
Sims propõe que uma
experiência espiritual saudável é compatível com uma tradição religiosa; o
indivíduo compreende a incredulidade dos outros e tem reservas em discutir sua
experiência com outros que acredita que não a compreenderão, é descrita com
convicção e, por fim, o indivíduo sente necessidade de efetuar alguma mudança no
seu comportamento depois da experiência vivida. Já a experiência patológica se
revela em resultados que são compatíveis com uma história de transtorno mental e
surge sempre associada a outros transtornos psiquiátricos.
Grof e Grof16, com
base em suas experiências clínicas, criaram o conceito de “emergências
espirituais”. Esses autores apresentaram essas experiências com um duplo
significado, possível pelos diferentes significados de Spiritual Emergence e
Spiritual Emergency. Spiritual Emergence refere-se à eclosão de uma
experiência espiritual que surge sem acarretar perturbação das funções
psicológicas. Já a Spiritual Emergency é a ocorrência descontrolada da
experiência espiritual com problemas dos funcionamentos psicológico, social e
ocupacional.
Grof e Grof fizeram
uma ampla e detalhada diferenciação entre as manifestações de uma experiência
espiritual e um transtorno mental. No primeiro caso, as experiências são suaves,
não geram sensações desagradáveis, não conflitivas, são graduais, preservam a
diferenciação entre o que é interno e o que é externo, geram uma atitude de
expectativa positiva, favorecem uma renúncia ao controle, estimulam a aceitação
de mudanças, integram-se à consciência diária, permitem uma compreensão
detalhada, não geram necessidade de discutir frequentemente e possibilitam uma
lenta mudança de compreensão de si mesmo e do mundo. Já as experiências ligadas
a um transtorno mental são intensas, geram sensações desagradáveis, como
tremores e calafrios, são conflitivas, são abruptas, não diferenciam o que é
interno do que é externo, geram uma atitude ambivalente, promovem a necessidade
do controle, instigam resistência às mudanças, trazem perturbações na
consciência diária, sua compreensão é confusa, geram a necessidade de discutir a
experiência e provocam modificações abruptas na consciência de si e do
mundo.
Greenberg e Witztum investigaram uma população de judeus ortodoxos, procurando diferenciar o que
seria um sistema de crenças e práticas religiosas rigorosos, mas
psicologicamente saudáveis, de um transtorno obsessivo-compulsivo com fundo
religioso. Assim, as experiências pessoais saudáveis são compatíveis com as
crenças aceitas pelo grupo religioso, seus detalhes não excedem as crenças
aceitas, são moderadas, geram excitação e as habilidades sociais e os hábitos de
higiene estão preservados. Já nas crenças obsessivas, as experiências são muito
pessoais e divergem das crenças do grupo, seus detalhes excedem as crenças
aceitas, são intensas, geram terror e as habilidades sociais e os hábitos de
higiene estão comprometidos. Já os comportamentos saudáveis não excedem as
prescrições, são gerais, não estão presentes condutas de limpeza e de
verificação e não ocorre a desconsideração de outras práticas. As condutas
compulsivas, diferentemente, excedem as prescrições, são muito específicas,
estão associadas a rotinas de limpeza e de verificação e trazem desconsiderações
para com outras práticas religiosas propostas pelo grupo religioso.
Lukoff propuseram para o Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders, na sua versão de 199419, uma nova categoria de problemas
psicológicos, denominada por eles “problemas religiosos e espirituais”.
Problemas religiosos são experiências perturbadoras, que envolvem crenças e
práticas de uma igreja ou instituição religiosa, que ocorrem, por exemplo, em um
momento de crise de fé ou na migração para uma nova orientação religiosa.
Problemas espirituais são experiências perturbadoras, que envolvem o
relacionamento do indivíduo com um ser ou força transcendente, que ocorrem, por
exemplo, nas experiências místicas e nas EQM. Em uma experiência mística
ocorrem uma vivência de união com um ser divino, uma grande euforia e a perda da
noção de tempo e espaço, que podem ser confundidas com episódios psicóticos
agudos. Em uma EQM, uma pessoa se vê
projetada fora do seu corpo, encontra seres espirituais e alcança uma nova
compreensão da vida, experiência esta que pode ser confundida com um transtorno
dissociativo de despersonalização.
Esse foi um importante avanço na Psiquiatria, pois se
colocou a possibilidade de muitas experiências espirituais e religiosas não
serem patológicas, apesar de se assemelharem a transtornos mentais. A criação
dessa categoria teve como objetivos incrementar especificidade no diagnóstico
dessas experiências, reduzir efeitos danosos de um diagnóstico equivocado,
estimular pesquisas que gerem tratamentos mais adequados para esses problemas e
estimular os centros de formação psiquiátricos a acrescentarem a compreensão e o
tratamento desses problemas aos seus programas de treinamento.
Jackson e Fulford
empreenderam um estudo comparando cinco indivíduos que tinham vivenciado
experiências espirituais com cinco indivíduos que estavam se recobrando de
surtos psicóticos, mas que interpretavam suas experiências em termos religiosos.
Eles propuseram que as experiências espirituais e psicóticas não podem ser
diferenciadas apenas pelos sintomas que são muito semelhantes em um caso e
outro, mas seria mais importante investigar o sistema de valores e crenças com
os quais o indivíduo avalia e compreende as suas experiências.
Jackson e Fulford
conseguiram, assim, levantar sintomas diferenciadores entre as duas
experiências. Assim, a experiência espiritual geralmente é: voltada para os
outros, é curta, vivida intelectualmente, existe dúvida sobre ela, preserva o
insight sobre a origem interna da experiência, é controlada, não leva a
perder o contato com a realidade, é emocionalmente neutra ou positiva (traz
satisfação), traz consciência da não compreensão dos outros, não ocorrem falhas
nas ações intencionais, não leva à deterioração da vida, seu conteúdo é
aceitável pelo grupo cultural de referência do indivíduo e gera crescimento
pessoal. Já a experiência psicótica geralmente é voltada para a própria pessoa,
é longa, é vivida corporalmente, existe a certeza sobre ela, falta
insight sobre sua origem interna, leva a pessoa a ser submergida nela,
leva a perder o contato com a realidade, é emocionalmente negativa (traz
sofrimento), não existe consciência da não compreensão dos outros, gera falhas
em ações intencionais, leva à deterioração da vida, seu conteúdo é estranho para
o grupo cultural de referência do indivíduo e ocorre um prejuízo geral na vida
pessoal.
Koenig, procedendo
a uma revisão da literatura sobre critérios diferenciadores entre experiência
espiritual e transtornos mentais, propôs que as primeiras não comprometem os
desempenhos social e ocupacional, preservam a compreensão do caráter incomum da
experiência, não geram rupturas na relação com um grupo sociocultural de
referência, não estão associadas a outras patologias mentais e geram crescimento
psicológico com o tempo.
A questão da saúde mental e da psicopatologia se torna
crítica diante dos fenômenos alucinatórios, que habitualmente são associados à
esquizofrenia ou a outros quadros psicóticos. Segundo Esquirol, a alucinação é
uma percepção sem objeto. A definição do
DSM-IV não se afastou muito desse significado original, ao definir alucinação
como uma percepção sensorial que apresenta um forte sentido de percepção real,
mas ocorre sem a estimulação externa dos órgãos de sentido pertinentes.
Pesquisas populacionais há mais de um século vêm indicando
que os fenômenos alucinatórios, mais do que uma categoria de experiências
restritas aos psicóticos esquizofrênicos, ocorrem de uma forma bastante
disseminada na população. No final do século XIX, Sidgwick, vinculado à Sociedade de Pesquisas
Psíquicas, juntamente com um grande número de colaboradores, entrevistou 7.717
homens e 7.599 mulheres britânicos. Ele constatou que 7,8% dos homens e 12% das
mulheres relataram ter tido pelo menos um episódio vívido de alucinação.
West, conduzindo uma pesquisa similar,
por meio da distribuição de questionários com 1.519 sujeitos, 50 anos depois, na
mesma região anteriormente investigada por Sidgewick, confirmou a ocorrência de
alucinações em 14% dos indivíduos investigados.
Tien constatou que
10% dos homens e 15% das mulheres em uma amostra de 18.572 indivíduos, obtida em
uma ampla pesquisa de sintomas psiquiátricos em uma população geral
(Epidemiological Catchment Area Program), apresentavam alucinações ao longo de
toda a vida sem manifestarem outros sintomas patológicos. Ohayon sondou 13.057 indivíduos da Grã-Bretanha, da
Alemanha e da Itália por telefone e constatou que 38,7% destes relataram ter
tido alucinações e, entre estes, 5,1% apresentavam esse sintoma uma ou mais
vezes por semana.
Além de as alucinações acontecerem extensivamente, Johns e
Van e Lincoln propõem que elas acontecem em um
continuum no qual em um extremo estão os indivíduos saudáveis e, no
outro extremo, estão os esquizofrênicos. Baseados em grandes estudos
populacionais, eles propõem que, tal como a esquizofrenia não é um construto
categorial, mas sim dimensional, ou seja, mais do que existir uma categoria de
esquizofrênicos puros, diferentes dos normais, a esquizofrenia se estende em
maior ou menor grau a toda a população. O diagnóstico patológico dependerá de
uma maior frequência e intensidade da experiência alucinatória, da coexistência
de outros sintomas e de prejuízos na capacidade de adaptação em geral.
Strauss propôs
serem indicadores de patologia a convicção sobre a realidade objetiva da
vivência alucinatória, a ausência de apoio cultural para a experiência, a grande
quantidade de tempo envolvido com a experiência e a implausibilidade da vivência
em relação à realidade socialmente compartilhada.
Slade, investigando
dois pequenos grupos de psicóticos (alucinadores e não alucinadores) e
Richardson e Divvo, examinando dois
grupos de alcoólatras (alucinadores e não alucinadores), utilizando testes
psicológicos, verificaram que as alucinações são geralmente disparadas por
estresse pessoal, em pessoas muito focadas em si mesmas, que são muito
imaginativas e têm um pobre teste de realidade. Honig et al.34 compararam grupos de não pacientes
alucinadores, pacientes com transtorno dissociativo e pacientes esquizofrênicos
e concluíram que as alucinações entre normais são tranquilas, não geram alarme
nem perturbação e existe controle sobre elas e as alucinações dos
esquizofrênicos são precedidas por eventos traumáticas, geram perturbação e não
existe controle sobre elas. Serper et al.29 compararam três grupos de pessoas, sendo 39
esquizofrênicos alucinadores, 49 esquizofrênicos não alucinadores e 363
universitários normais e assinalaram algumas características dos alucinadores
esquizofrênicos: consideram que suas alucinações visuais e auditivas são
percepções objetivas, têm vários impedimentos na vida, apresentam outras
disfunções clínicas e têm percepções distorcidas.
Experiências dissociativas também estiveram associadas a
transtornos mentais. O termo dissociação foi inicialmente criado por Pierre
Janet, em 1880, para significar “desagregações psicológicas”. Segundo esse autor, a dissociação seria a
perda da unidade do funcionamento da personalidade humana, na qual certas
funções mentais atuariam de forma independente e fora de um controle consciente.
A dissociação pode ocorrer naturalmente, como, por exemplo, quando uma pessoa se
absorve tanto em assistir a um filme que fica totalmente alheia a tudo o mais
que esteja acontecendo a si mesmo ou ao seu redor.
Na concepção original de Janet, a dissociação seria um
construto categorial, ou seja, é um tipo ou categoria de experiência que só
ocorreria em indivíduos mentalmente doentes, que teriam uma deficiência em
integrar diferentes conteúdos psicológicos. Alguns contemporâneos de Janet, como
Frederic Myers, Morton Prince e William James, apresentaram um ponto de vista
diferente, pelo qual a dissociação é entendida como um construto dimensional, ou
seja, é vivenciada em maior ou menor grau por todas as pessoas indo de um
extremo saudável até o outro extremo patológico36.
É necessário termos uma compreensão da extensão em que a
dissociação ocorre na população em geral. Ross et al.37 avaliaram uma amostra de 1.055 adultos não
diagnosticados, extraída do total de 650.000 habitantes da cidade de Winnipeg,
Canadá. Eles aplicaram nesta amostra o DES (Dissociative Experience Scale), um
instrumento de autoinforme composto por 28 itens que mede experiências
dissociativas, e constataram que 13% desses indivíduos apresentaram uma
pontuação acima de 20, indicando a existência de um nível alto de vivências
dissociativas nessa amostra.
Waller et al.38 e Martinez-Taboas propuseram que a dissociação não patológica
envolve a capacidade de absorção e de envolvimento imaginativo e constitui uma
experiência humana para a qual todos os indivíduos são propensos em maior ou
menor grau. Tellegen e Atkinson
definiram a absorção como um estado de total atenção, no qual o aparelho
representacional parece estar totalmente dedicado a experienciar o objeto
percebido. Wilson e Barber, Rhue e
Lynn e Rauschenberger e Lynn identificaram alguns indivíduos, que
denominaram de “fantasiadores”, como sendo muito propensos à fantasia, tendo
tido na infância um maior envolvimento com jogos de fantasia do que com
brincadeiras com outras crianças e sua capacidade de fantasiar representou um
canal de escape para sua solidão e sua raiva.
Lewis-Fernandez afirma que a dissociação não patológica ocorre com o controle pleno por parte do
indivíduo, dentro de um contexto cultural que a organiza, e é significativa para
a própria pessoa e para os outros. Butler acrescenta que a dissociação saudável é útil
em todo o processamento mental, facilita ações e atitudes automáticas, ajuda a
escapar mentalmente de situações desagradáveis e a concentrar-se em atividades
absorventes, não tem sua origem associada a traumas, ocorre em períodos curtos,
é suave e não bloqueia o funcionamento da mente.
A propensão à fantasia, entretanto, por mais inocente que
possa parecer, pode levar à dissociação patológica, quando um evento traumático
faz o indivíduo buscar, na fantasia, a forma de escapar da realidade
intolerável. A dissociação patológica,
surgindo inicialmente como uma forma de lidar com a situação aversiva, pode se
generalizar para as demais situações de vida, passando a trazer prejuízos na
capacidade de adaptação do indivíduo45. É
a interação entre a capacidade natural de absorção, com as experiências
traumáticas, que resultará na dissociação patológica45.
A dissociação patológica expressa um definido mau
funcionamento psicológico, gera sofrimento e incapacitação, é involuntária e é
interpretada pelo grupo cultural de referência do próprio indivíduo como sendo
uma doença que necessita de tratamento44.
Dissociadores patológicos mesclam as formas não patológicas com as formas
patológicas de dissociação. A
dissociação patológica está ainda associada a experiências traumáticas do
passado, é crônica, grave e debilitadora para os funcionamentos psicológico e
social do indivíduo45.
Segundo Waller et al.38 e Martinez-Taboas39, a dissociação patológica se expressa por
meio da amnésia, da despersonalização-desrealização, da confusão de identidade e
da alteração de identidade.
A amnésia dissociativa compreende basicamente a perda de
memória, sobretudo de eventos recentes e de informações pessoais importantes,
que não pode ser atribuída a um esquecimento habitual, à fadiga ou a um sintoma
de origem orgânica48.
A despersonalização refere-se às alterações afetivas e
perceptuais em relação ao self, que levam o indivíduo a estranhar a si
mesmo e ao seu próprio corpo. A desrealização refere-se às mesmas alterações em
relação ao seu meio ambiente, que fazem o indivíduo se sentir desconfortável
nesse ambiente48.
O transtorno de identidade dissociativa, antes chamado de
transtorno de identidade múltipla, manifesta-se pela existência de duas ou mais
personalidades dentro de um mesmo indivíduo, que se alternam dentro dele, com
períodos de amnésia, eclipsando as personalidades que foram afastadas48.
A alteração de identidade é vista mais evidentemente no
transtorno de transe dissociativo. Cardeña et al.48 definem transe como uma alteração temporária
da consciência, da identidade ou do comportamento, com diminuição da percepção
do ambiente e ocorrência de movimentos que estejam fora do controle da própria
pessoa, sem substituição da própria consciência por outra. Os mesmos autores
definem transe de possessão como sendo a mesma vivência, com a diferença que a
alteração da consciência é atribuída a uma força ou entidade espiritual externa
que se apossa da consciência daquele que vivencia a experiência.
Deve-se tomar cuidado para não considerar patológicas todas
as formas de transe e possessão, pois Bourguignon, em uma investigação antropológica, constatou
que, em 488 sociedades no mundo, 90% delas possuíam formas institucionalizadas
de transe e, em 52% destas, esses estados são atribuídos à possessão por seres
espirituais. Isso nos mostra que a extensão em que essa vivência acontece no
mundo nos leva a tomar cuidado para não reduzi-la a um mero mau funcionamento
psicológico de indivíduos mentalmente doentes.
Lewis propôs alguns
critérios para diferenciar a possessão saudável da patológica. A possessão não
patológica, denominada por ele como central, é episódica, ocorre em um tempo
delimitado, é organizada e ocorre dentro de um contexto cultural que lhe confere
significado. Já a possessão patológica, denominada por ele como periférica,
tende a ser crônica, ocorre de forma não controlada, não é organizada e não
compatível com o contexto cultural no qual o indivíduo esteja integrado.
Beng-Yeong propõe
que estados de transe saudáveis sejam disparados por ações definidas, sejam
curtos e gerem resultados benéficos para o indivíduo que os vivencia e serão
patológicos se forem disparados por emoções estressantes, durarem muito e
gerarem resultados maléficos para quem os vivencia.
Cardeña et al.52, utilizando os conceitos de Lewis, afirmam que a possessão central (não
patológica) vem de uma predisposição provavelmente biológica, que foi modelada
por fatores socioculturais organizados, que levaram a rituais controlados de
possessão. É neste sentido que poderemos compreender os transes de possessão da
mediunidade, que acontecem nas religiões mediúnicas, como no Espiritismo, na
Umbanda e no Candomblé. Já a possessão periférica (patológica) também decorreria
de uma predisposição biológica, mas que foi impactada por traumas físicos ou
sexuais, gerando alterações de identidade difíceis de controlar e organizar. Os
indivíduos passam a apresentar sofrimento psicológico e prejuízos significativos
nos seus funcionamentos social e ocupacional.
Discussão
Será apresentado um resumo com os principais sintomas diferenciadores entre uma experiência espiritual e um transtorno mental propostos por esses autores. A ordem de colocação desses critérios deve-se a uma concordância decrescente dos autores em relação a eles, tal como apresentados neste estudo. Esses critérios não devem ser considerados isoladamente, mas sim em um conjunto. Faltam, entretanto, mais estudos que testem prospectivamente os critérios diferenciadores do que seria uma experiência espiritual e do que seria um transtorno dissociativo ou espiritual.
I – Ausência de sofrimento psicológico
O sofrimento está relacionado à doença. Deve-se lembrar, entretanto, que os estágios iniciais de uma experiência religiosa ou espiritual podem vir acompanhados de grande sofrimento pessoal que poderão ser superados à medida que o indivíduo avançar na compreensão e no controle da sua experiência. Greyson, estudando as EQM, afirma que os indivíduos, após essa experiência, sentem raiva e depressão, experimentam abalos em suas crenças religiosas, passam a duvidar de sua sanidade mental, sentem-se incompreendidos pelos familiares e profissionais de saúde e que 75% rompem casamentos, e suas carreiras profissionais podem ficar gravemente prejudicadas. Comentando quatro casos em seu artigo, ele afirma que o atendimento psicoterapêutico e psicofarmacológico adequado trouxe uma melhor compreensão da experiência vivida por eles, levando esses pacientes a retomarem e muitas vezes reestruturarem sua vida de forma mais significativa.
II – Ausência de prejuízos sociais e ocupacionais
A saúde psicológica implica um ego estruturado gerenciando adequadamente as relações sociais, familiares, afetivas e atividades ocupacionais. Lukoff et al.54, entretanto, comentam como indivíduos que tiveram uma experiência mística podem se sentir temporariamente desajustados em relação à sua vida cotidiana, enquanto não conseguirem compreendê-la e retomá-la.
III – A experiência tem duração curta e ocorre episodicamente
A experiência espiritual não patológica é um acréscimo às possibilidades vivenciais do indivíduo, não se interpondo às demais experiências cotidianas da consciência. Assim, espera-se que a pessoa saudável passe por uma vivência incomum e logo retome seu estado habitual de consciência e suas atividades cotidianas. Existem casos, entretanto, de médiuns treinados que sustentam experiências espirituais por mais tempo sem comprometimento de sua saúde mental.
IV – Existe uma atitude crítica sobre a realidade
objetiva da experiência
A consciência saudável, surpreendida pela experiência espiritual ou religiosa, precisará refletir sobre o sentido dessa experiência para si mesmo e para sua vida. Enquanto o indivíduo não desenvolver uma nova compreensão sobre a experiência que esteja vivendo, ele precisará colocar sob suspeita essa nova experiência, até que ela possa ser compreendida. Enquanto isso, ele poderá não conseguir avaliar adequadamente o que lhe sucedeu, como ocorre, por exemplo, nas experiências místicas, como mostraram Lukoff et al.54.
V – Existe compatibilidade da experiência com algum grupo cultural ou religioso
A compatibilidade da experiência com as crenças e os comportamentos próprios de um grupo cultural de referência sugere o ajustamento social daquele que vive a experiência com as práticas de um grupo, conferindo legitimidade a essa vivência. Entretanto, a EQM13 e a mediunidade podem surpreender indivíduos, seus familiares, bem como os grupos religiosos em que eles estejam inseridos, sem que alguém tenha qualquer compreensão sobre o que tenha ocorrido.
VI – Ausência de comorbidades
Sims apontou que a psicopatologia relacionada a uma experiência espiritual pode ser observada tanto no comportamento do indivíduo quanto na sua experiência subjetiva, manifesta-se em todas as suas áreas de vida e compõe um histórico de vida compatível com o histórico de um transtorno mental, em nada lembrando uma experiência espiritual. Quanto mais evidenciada estiver a patologia, mais probabilidades teremos de estar diante de um transtorno mental.
VII – A experiência é controlada
Cabe a um ego vigilante controlar suas vivências habituais e garantir um bom desempenho pessoal e social. Caberá a ele, da mesma forma, controlar as experiências espirituais e religiosas, de modo a não prejudicar suas vivências habituais. Formas orientais de meditação, por exemplo, tendem a atrair indivíduos com transtorno de personalidade borderline e narcisista, que têm uma frágil integração psicológica, podendo gerar nesses indivíduos falsas experiências de iluminação, repletas de visões aterradoras.
VIII – A experiência gera crescimento pessoal
A experiência espiritual gera significados enriquecedores para a vida pessoal, social e profissional de um indivíduo. Já a experiência patológica, mal estruturada e mal estruturada desde o princípio ampliará o desequilíbrio do indivíduo ao longo do tempo, resultando em deterioração geral da sua qualidade de vida.
IX – A experiência é voltada para os outros
A experiência voltada para os outros guarda um sentido e um objetivo social, próprios de alguém socialmente ajustado. Já a experiência egocentrada tende a ser isolacionista e pode, muito facilmente, levar o indivíduo a enredar-se nos meandros de um pensamento delirante sem que ele próprio possa se dar conta da extensão do seu desvio da normalidade.
Conclusão
Embora os critérios diferenciadores aqui apresentados sejam sugestivos para diferenciar uma experiência espiritual de uma condição de transtorno mental, são necessários estudos controlados que testem esses critérios sugeridos.
Esses futuros estudos deverão tomar alguns cuidados para
que possam ter maior validade.
Tart já tinha
apontado a inadequação da abordagem científica tradicional para abordar os
“Estados Alterados de Consciência”, entendidos como alterações qualitativas no
padrão global de funcionamento mental que o indivíduo sente serem radicalmente
diferentes do seu modo habitual de funcionamento, recomendando o uso extensivo
de observações empíricas que possam ser replicadas por outros
investigadores.
Heber e Ross propuseram que os estudos sejam feitos com
populações não clínicas, para que seus resultados possam ser mais generalizáveis
para a população não diagnosticada.
Reinsel sugeriu que
fossem utilizadas amostras maiores e estas fossem recolhidas de ambientes onde
as experiências estudadas ocorram com maior frequência.
Almeida e Neto
recomendam, entre outras coisas, utilizarem-se diversos critérios de normalidade
e patologia, avaliar a experiência de modo multidimensional e priorizar estudos
longitudinais que permitam esclarecer as complexas relações causais entre as
variáveis associadas às experiências espirituais e aos transtornos mentais.
Levin e Steele
também insistem em estudos longitudinais, propõem o uso de conceitos
operacionais relativos às experiências e recomendam buscar respostas para as
seguintes perguntas: o que, quem, onde, quando, como e por quê.
FONTE: Revista de Psiquiatria Clínica da Universidade de São Paulo - USP.
Menezes Júnior A, Moreira-Almeida A / Rev Psiq Clín. 2009;36(2):75-82
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